MAIS: Este texto é a primeira parte do segundo capítulo de: > O Capitalismo se desloca, livro mais recente do autor (Edições SESC) > A obra está sendo publicada em partes, às quartas-feiras, por Outras Palavras. Acesse aqui a Parte 1. > Uma breve apresentação e um diálogo com Ladislau Dowbor a respeito da obra podem ser acessados aqui
Vimos
até
aqui
a mudança
profunda
no
conteúdo
dos
processos
produtivos.
Naturalmente,
continuamos
a produzir
trigo
e arroz, aço e
automóveis, mas o
elemento básico de
formação do valor, o
fator principal de produção, é constituído por um conjunto
de atividades intangíveis
que podem ser
generalizadas sem custos adicionais
significativos.
Quando surgiu
a indústria,
a agricultura não
desapareceu,
inclusive
porque
sua intensificação
seria necessária
para fornecer
alimentos às
cidades e
matérias-primas às
fábricas. Mas
o eixo
dominante de
estruturação social
passou a
ser a indústria,
levando
à transformação
da própria
agricultura. Com a
emergência do conhecimento e dos
intangíveis no sentido
amplo, a indústria e a agricultura expandem a sua capacidade
produtiva, justamente,
pela incorporação do conjunto
dos avanços intangíveis
que passam a
dominar as transformações. Mas
quem assume o
comando já
não é
mais necessariamente
quem
controla as suas
máquinas.
Tal como
a lógica da
acumulação industrial
passou a dominar o
conjunto
das
relações
sociais
de
produção
na segunda
metade
do século
XIX
e no
século
XX,
hoje
a dinâmica
estruturante
da sociedade
passa a ser o
acesso à informação
e ao controle
do
conhe-cimento
no
sentido
amplo.
André
Gorz,
no
seu
estudo Oimaterial,
resume logo
nas
primeiras
linhas
a dimensão
do
deslocamento:
A ampla admissão do conhecimento como a principal força produtiva provocou uma mudança que compromete a validade das categoriaseconômicas-chave e indica a necessidade de estabelecimento de uma outra economia.A economia do conhecimento que atualmente se propaga é uma forma de capitalismo que procura redefinir suas categorias principais – trabalho, valor e capital – e assim abarcar novos domínios1.
Controlar
o conhecimento
significa controlar
o principal
fator de produção
da sociedade.
Ignacy Sachs
resumiu bem
a ideia:
no século passado,
o poder
era de
quem
controlava
as fábricas;
neste século vai
ser de
quem
controla
a informação.
Tal como
a lógica de
organização social
muda com
a transição
da era
agrícola para a
era industrial, enfrentamos uma profunda mudança sistêmica com
a centralidade
da era
da informação.
Esse ângulo
de análise nos
parece bem mais esclarecedor das dinâmicas aceleradas de
mudança que
vivemos
do que
imaginar que
se trata
de uma
Quarta Revolução
Industrial. As
bases técnicas
dos
processos produtivos
se deslocaram,
vamos
ver
agora
os impactos
sobre o
conjunto das
relações sociais
de produção.
Da concorrência de mercado à organização interempresarial
No caso do universo
industrial, a tendência para o gigantismo sempre foi
forte, na medida
em que poder repartir, em
mais unidades produzidas,
os custos
fixos
– como
máquinas e
equipamentos
– assegurava
as chamadas
economias de
escala, como
no caso emblemático
da General
Motors e
em tantos
outros.
A lógica aqui
é de um grande produtor
de um determinado produto: quando
falamos de
um carro
da GM
sabemos
do que
e de
quem
se trata. Os gigantes
empresariais apresentados
na Figura 3 detêm ativos
muito mais
elevados do que
o PIB da maioria dos
países; além disso, eles têm em comum o fato de
constituírem redes de
controle de inúmeras
atividades, através
de controle acionário.
A Berkshire Hathaway, de
Warren Buffett, que
ocupa a sétima posição,
já foi
uma empresa
do ramo
têxtil, mas
hoje é
essencial- mente uma holding financeira que
controla e extrai
dividendos de transporte
ferroviário, enciclopédias,
meios de comunicação, aspiradores,
joias, eletricidade, gás
e outros setores,
em particular o
de seguros.
Cruza com
interesses do
Goldman Sachs
e tem Bill
Gates, um
dos
fundadores da
Microsoft, como
segundo maior
acionista. Estamos em família. A Alphabet
é a controladora do
Google,
a Tencent
é um
gigante
chinês de
tecnologia e
jogos.
As
cinco maiores corporações
do mundo valem no conjunto US$3,35
trilhões – mais
do que o PIB do Reino Unido
ou de qualquer outro país do mundo com exceção
de Estados Unidos, China,
Japão e Alemanha. O
imenso aumento de valor sobreveio
depois que os mercados
de ações chegaram
ao fim de 2017 com
altas recordes,
quando os preços
das ações se
beneficiaram dos cortes
de impostos do
presidente Donald Trump e
da continuação da flexibilização
quantitativa [quantitative easing] dos
bancos centrais2.
Ou seja, são gigantes, mas
o gigantismo consiste
essencialmente na rede
de controle que
lhes permite extrair dividendos.
Se qualquer uma
fosse vender suas
máquinas e instalações, não recolheria
grande
coisa. O
seu valor
é essencialmente
imaterial e
consiste na capacidade sistêmica
de extrair dividendos. As
eventuais fábricas
controladas são meras
terceirizadas, e o conjunto
forma uma arquitetura de
interesses profundamente diferente
do tradicional sistema empresarial. O valor
dessas corporações, inclusive,
é calculado
pelo valor
de suas
ações no
mercado,
que,
por sua vez,
depende
dos
dividendos
pagos
aos acionistas.
Os ativos
da nova economia,
no topo da pirâmide, são
essencialmente imateriais. Que
base material
se venderia
com o
Facebook?
A transformação foi
acompanhada de um curioso deslocamento
do conceito
de mercado.
Tal
como foi
desenvolvido nos
clássicos da economia, o conceito se referia
à livre troca de
bens e
serviços que
permitiria que
se estabelecesse
naturalmente o equilíbrio entre
preços e quantidades, no
contexto de inúmeras
empresas, sem que nenhuma pudesse dominar o processo e deformá-lo.
Isso sem dúvida ainda
existe, por exemplo, no
mercado de camisetas e semelhantes, assegurando que
a população enquanto
consumidora possa exercer
um certo papel, na
linha do
que
Milton Friedman
chamava
de “liberdade
para escolher”. Mas
hoje,
quando
nos
referimos
aos “mercado”,
temos em mente um
grupo de grandes intermediários
financeiros que
estão observando
o rendimento
das suas
ações e
de outras
aplicações financeiras.
A gigante
Tencent,
multinacional de
base chinesa
que
aparece logo após
o Facebook na
Figura 3, dá uma boa ideia de uma corporação
moderna. Em
uma simples
consulta na
Wikipédia, é possível
saber que esse
grupo controla atividades
relativas a comércio eletrônico,
jogos de videogame, softwares,
realidade virtual,
compartilhamento de
transporte, atividades
bancárias, serviços
financeiros, fintech,
tecnologia de
consumo,
informática, indústria
automobilística,
produção e
distribuição
audiovisual, venda
online de
ingressos,
música,
tecnologia espacial,
recursos naturais, smartphones, bigdata,
agricultura, serviços
médicos, computação
em nuvem,
mídia social, e-books, serviços
de internet,
educação, energia renovável,
inteligência artificial, robótica, entrega
de alimentos
e outros.
Pode
atuar em
qualquer
setor,
em qualquer
país, em
atividades
cruzadas com
inúmeras companhias,
que
vão
desde
a plataforma
estadunidense de
compartilhamento de
vídeos YouTube
até a
empresa francesa
de cosméticos
L’Oréal. É pouco
provável
que
você
tenha ouvido
falar da
Tencent,
e, no entanto,
seguramente, em
alguma das
suas atividades
de compra
você alimenta
os controladores
dessa empresa3.
Fonte: Convergence Alimentaire apud Harry Bradford, “These 10 Companies Control Enormous Number Of Consumer Brands”, em: HuffPost, 27 abr. 2012.
O mundo mudou radicalmente
e está mudando ainda
mais, e de forma
acelerada. Conhecemos
os produtos
finais que
aparecem nas gôndolas
dos supermercados, mas
saber a quem pertencem,
quem
os controla,
qual
é a
política adotada
em termos
ambientais, sociais
oude simples segurança do consumidor está evidentemente fora
do nosso
alcance. Os
grupos centrais
da Figura
4 constituem holdingsfinanceiras que
controlam
outras instituições
financeiras dispersas em vários
setores e vários países,
que, por sua vez,
controlam empresas
realmente produtoras de
alguma coisa que se
consome. Nomes
de referência como
Nestlé são mantidos
apenas pelo elevado
investimento feito
durante décadas para associar a marca a imagens
positivas. No topo
decidem gestores
financeiros que pouco
entendem das esferas
produtivas; e nem poderiam
entender,
considerando
a diversidade
de produtos,
setores e
países de
atividade.
De um
mundo
de livre
concorrência de mercado,
nós passamos a gigantescas pirâmides de poder financeiro que
constituem sistemas complexos
de articulação. Na
ausência de
qualquer
sistema de
governança
política global,
o sistema econômico
global
está constituindo
a sua
própria rede
de poder. “A
política mudou
de lugar”,
na excelente
formulação
que herdamos de
Octavio
Ianni.
Do
lucro sobre produção à renta sobre
aplicações financeiras
No
livro Aeradocapitalimprodutivo,
apresentamos
o estudo do
Instituto Federal
Suíço de
Pesquisa
Tecnológica
de Zurique
que
mostra que
hoje,
no mundo,
737
grupos controlam
80% do universo
corporativo
e que,
nesse universo,
147
grupos controlam
40%, sendo
três quartos
deles
bancos4.
A lógica
sistêmica muda
radicalmente, pois
o interesse
maior desses
grupos está
na rentabilidade
financeira final,
definida por
aqueles
que
estão no
topo da
pirâmide. O
espaço de
decisão empresarial,
tradicionalmente tomado
do ponto
de vista
de um
produtor concreto
de um
bem ou serviço
determinado –
que,
portanto, estaria
interessado inclusive
em prestar
um bom
serviço ao
cliente –,
desloca-se. A
mudança profunda em
termos de
quem
controla
as decisões
leva
ao deslocamento
da forma
de se
extrair a
mais-valia gerada
no quadro
dos processos
produtivos.
Os acionistas
dominantes, ou
controladores financeiros
de diversos
tipos,
veem
a empresa
produtora
que
está na base
da pirâmide
como uma
unidade de
extração de
dividendos.
Antigamente,
uma unidade
empresarial produtora
de bens ou
serviços podia
se orientar
por uma
visão estrutural
e de
longo prazo
de inserção
na comunidade,
de apoio
à formação
de funcionários,
de investimento no
desenvolvimento sustentável
do território onde se
situava. A uma BHP
Billiton ou aos acionistas
do Bradesco
(via Vale
e Valepar),
interessa apenas
a maximização do
rendimento financeiro da Samarco, em geral
em curto prazo.
Pode
haver
visionários no
topo
da pirâmide,
mas essencialmente
se trata
de gente
que
ganha em
função do
máximo de
apropriação do
excedente produzido na
base; por exemplo, ao
considerar que
vale
mais a
pena aplicar
os ativos
da empresa
em títulos
da dívida
pública do que investir
na expansão da capacidade
produtiva. A lógica da rentabilidade
mudou.
Grande parte
da estagnação relativa
das economias
que constatamos
hoje no mundo,
apesar dos imensos
avanços tecnológicos,
deve-se ao fato de o
capital na sua
forma-dinheiro –
que era
reinvestida
na expansão do
processo produtivo,
o chamado
capital-dinheiro –
ter se transformado
simplesmente em patrimônio
de pessoas físicas,
que não
participam do
processo produtivo.
Com a apropriação
do excedente produzido
nas empresas
por parte
de pessoas físicas ou
jurídicas não
produtivas, o que
era capital
(no sentido
de fomentar
a dinâmica de acumulação
de capital)
transforma-se em fortunas
que podem
ser gigantescas, mas
que travam
a dinâmica produtiva
em vez de
estimulá-la. Basta ver
as figuras 1 e 3,
sobre os
principais bilionários
e sobre as
empresas de
maior capitalização.
A economia intangível
gera uma outra forma de
apropriação do
excedente produzido
pela sociedade, e
em escala muito
superior à exploração
salarial. Coisa
importante, as
novas formas
de apropriação
do excedente são
menos conflitivas,
pela impessoalidade e
complexidade do
sistema. Alguém entende
como um Henrique
Meirelles gerou
o sistema absurdo
da JBS por
meio da holding financeira J&F,
transitando com
tranquilidade entre os
trambiques do
mundo financeiro
privado e os
do ministério
da Fazenda de
um país que é a
nona potência econômica
mundial?
O grande aporte de Thomas
Piketty foi de deixar
absolutamente claro o
fato de que o sistema
assumiu características de autorreprodução,
pois as aplicações financeiras rendem
mais do que os
investimentos na economia
real. As aplicações
renderam, em média,
considerando as últimas
décadas, entre 7% e 9%
ao ano.
O PIB mundial cresce, em média, entre
2% e 2,5%. O grosso da população mundial não faz aplicações
financeiras, gasta o que ganha
ou até mais do que ganha,
endivida-se e paga juros. Os que
auferem rendimentos de
aplicações financeiras constituem a nata econômica da
sociedade. São pessoas que
pouco ou nada produzem, mas possuem “papéis”, como ações,
títulos de dívida pública e outras formas
imateriais de riqueza,
que passam a
constituir o que temos
chamado de “rendimentos não
produtivos” ou “renta”
(em inglês, “unearned income”, ou “rent”, diferente
de “income”; em francês,
“rente”,
diferente de “revenu”,
que é renda
originada em processos
produtivos).
Ou
seja, a
forma
dominante de
apropriação
do excedente
por minorias pouco
ou nada
produtivas
– o
mecanismo básico
de exploração,
para deixar
claro do
que
se trata
– deslocou-se
e sofisticou-se.
Onde tínhamos,
e evidentemente
ainda temos,
a apropriação
através
dos
baixos salários,
a tradicional
mais-valia, hoje
temos também
a expansão
de formas
inovadoras
de apropriação,
gerando uma
sociedade dominantemente
rentista. Essa
compreensão
ajuda a
entender
por que
é tão
frágil o
ritmo de
desenvolvimento
da economia
real, apesar
de tantos
avanços
tecnológicos
e de tanto
potencial de
generalizar a
prosperidade.
Apropriação
do excedente social pelos intermediários financeiros: o capital
improdutivo
Estudamos em detalhe
no livro A era do capital improdutivo as
mudanças profundas na
forma de
apropriação do
excedente. Retomamos
aqui o relato,
ainda que
resumidamente, pois
a forma de
exploração é essencial
para a caracterização
de um modo de
produção, e sem
esses dados
o presente estudo ficaria
desequilibrado.
Tomando o caso do Brasil
como referência, enfrentamos
uma deformação profunda
de toda a economia, processo que
se evidencia ao analisarmos o fluxo financeiro integrado: os
juros que incidem sobre
as pessoas físicas, sobre as empresas e sobre a dívida pública; o
sistema tributário e os seus desequilíbrios,
além da evasão fiscal;
e, finalmente, os vazamentos
para os paraísos fiscais.
Onde tínhamos
o ciclo
de acumulação
do capital,
em que
o dinheiro
investido
na produção
voltava,
aumentado
com o
lucro, para
financiar mais capital produtivo,
hoje temos um sistema de dreno
que
fragiliza a
reprodução
do capital.
Os grandes números são
grandes, mas não
complicados. Podemos
partir de uma cifra básica de referência,
o nosso PIB de
2019, parado em seus 7,3
trilhões de reais. Isso
nos permite ter ordens
de grandeza,
uma coisa
tão simples
como o
fato de
730
bilhões de
reais representarem
10%
do PIB
e 73
bilhões representarem
1%. É uma aritmética elementar
que torna os
números mais “palpáveis”
na nossa cabeça, já que,
no cotidiano, salvo no
caso de alguns afortunados, não
lidamos com bilhões. Por
exemplo, quando
os grandes exportadores
e importadores fraudam notas
fiscais que lhes permitem
desviar 140 bilhões de reais por ano,
são mais
de 2%
do PIB
desviados,
curiosamente sem
aparecer no
noticiário, enquanto
os parcos
30 bilhões
de reais
do Bolsa
Família, que
por sinal dinamizam a economia pela demanda gerada,
são apresentados como
um gasto dramático, quando mal
alcançam 0,5%
do PIB.
Organizar e
interiorizar esse
tipo de
“régua”
de medida de grandes
valores é muito útil,
pois os manipuladores de análises econômicas adoram
navegar com
números grandes e
incompreensíveis.
São bilhões,
mas são
nossos
bilhões, resultado
do nosso trabalho como
sociedade, e é tempo de lhes darmos a devida
atenção.
A economia funciona com quatro
motores: 1) o mercado externo; 2) a demanda das famílias; 3)
o investimento e a
produção empresariais; 4) o investimento
em infraestrutura e nas pessoas (políticas sociais) por parte
do governo. No
Brasil, o mercado externo,
ainda que importante,
pesa pouco no conjunto. As
exportações atingem
pouco mais de 200 bilhões de dólares,
cerca de 10% do
PIB, nada determinante
neste país de grandes dimensões
em que o mercado e as
atividades internas
representam basicamente
90% da
dinâmica econômica.
Não
somos
Singapura,
nem Taiwan,
nem Coreia do Sul. Somos um gigante
de 210 milhões de
habitantes. Se a economia interna não funciona, o mercado externo
pode ajudar,
mas não
resolve.
A explicação
fácil dos
avanços
e dos
retrocessos econômicos
pelo preço
das commoditiesno mercado
mundial constitui essencialmente um engodo
para não se olharem as causas
internas.
No
mercado interno,
o essencial
é o
segundo motor,
que
representa
o consumo
das famílias,
pesando cerca
de 60%
no total.
Se as famílias
não consomem,
as empresas
não têm
para quem
produzir, e
ambas
passam a
pagar menos
impostos,
o que
reduz a
capacidade do
Estado de
realizar investimentos
em infraestrutura
e em políticas
sociais. É
o círculo
vicioso em
que
nos
encontramos atolados
desde
o golpe
de 2016.
As
famílias reduziram
o seu
consumo já
a partir
de 2012
– e
de maneira mais
acentuada em
2013 e
nos
anos seguintes
–, porque
se endividaram.
Segundo o
Serviço de
Proteção ao
Crédito (SPC
Brasil), em
2018,
64
milhões de
adultos (mais
de 40%
do total)
estavam
“negativados”,
ou seja,
não conseguiam
honrar os
compromissos de
gastos anteriores, que
dirá fazer novas
compras. Estamos
falando dos adultos
que têm finanças
comprometidas, mas, se
somarmos as
suas famílias,
estaremos falando
de quase
metade da população brasileira. O aumento
do endividamento das
famílias está
bem documentado.
Em janeiro
de 2005,
o estoque
de dívida
familiar representava
18,42%
da renda
mensal, elevando-se
para 43,86%
em 2013
e chegando
a mais
de 46%
em 2015.
Em si
o volume da dívida
não seria crítico se não fossem
as taxas de juros aplicadas. Conforme os dados da Associação
Nacional dos
Executivos de
Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), que
apresenta os juros
efetivamente praticados
no mercado, as pessoas físicas pagavam,
em fevereiro de
2018, 129,29% ao ano
sobre “artigos do lar”
nos crediários, 64,22%
em empréstimo pessoal dos
bancos, 297,18% no
cheque especial e 316,50%
no rotativo do cartão de
crédito. Para se ter
ordem de grandeza, na França o empréstimo pessoal no banco custa
menos de 5% ao ano,
e os crediários raramente
ultrapassam 10% ao
ano. Os juros praticados no Brasil constituem simplesmente um sistema
legal de agiotagem, tornado possível pela eliminação do artigo 192
da Constituição – que regulamentava o Sistema Financeiro Nacional
(SFN) – por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição em
1999 (PEC 53/1999), transformada em Emenda Constitucional (EC
40/2003). O artigo 192 fixava um teto de taxas de juros reais (acima
da inflação) de 12%.
As taxas de juros para
pessoa jurídica são tão escandalosas quanto
aquelas para
pessoa física, proporcionalmente.
O estudo da Anefac
apresenta
uma taxa
praticada média
de 63,08%
ao ano para pessoa
jurídica, sendo 28,93% para
capital de giro,
34,96% para desconto
de duplicatas
e 146,83%
para conta
garantida.
Ninguém em sã consciência imagina que
seja possível
desenvolver atividades
produtivas – criar uma empresa,
enfrentar o tempo de entrada
no mercado
e de
equilíbrio de
contas –
pagando
esse nível
de juros. Aqui, o
investimento privado e a
produção são diretamente
atingidos.
As grandes empresas têm
como negociar juros mais baixos por meio do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e as multinacionais aproveitam
juros abaixo de 5%
ao ano no exterior. Mas as
pequenas e médias empresas estão condenadas a pegar empréstimos
nas agências bancárias
onde têm suas contas e a
arcar com juros surrealistas. O mundo empresarial, que
já está sendo paralisado pelo travamento
da demanda, constata que
recorrer ao crédito para passar pela fase crítica
é proibitivo.
Além
disso, como
a taxa
Selic elevada
permite ganhar mais
– e
sem esforço
– com
aplicações financeiras
do que
investindo na produção, prática que
se generalizou, o desvio
dos recursos da produção para aplicações financeiras foi
inevitável, agravando o travamento
da economia. A inflação caiu não por alguma habilidade
particular de política macroeconômica, mas simplesmente
porque, com a economia quebrada,
as empresas passaram a empurrar seus estoques
inclusive com
perdas. Inflação se equilibra
financiando com crédito barato o consumo das famílias
e o
investimento
das empresas,
ou seja,
equilibrando
a demanda com maior oferta, e não quebrando tanto as famílias
como as empresas.
Segundo o Banco Central, o estoque
de dívida das
famílias e das empresas representou
em 2018 cerca de
3,1 trilhões de reais, quase
metade do PIB. Muitos
países apresentam um
volume maior de
endividamento, mas nenhum
apresenta as taxas de juros cobradas aqui sobre
esse estoque. No
cálculo que inclui
as dívidas de pessoas
físicas e de pessoas jurídicas, crédito livre
e direcionado, o fluxo de juros extraídos
pelos intermediários financeiros
chega a
1 trilhão
de reais,
15% do
PIB,
resultado direto
das taxas absurdas apresentadas
anteriormente.
A
intermediação financeira
não é atividade-fim, e
sim atividade-meio,
portanto representa um custo.
Sua função econômica
depende da
capacidade de
fomentar a
economia, mediante uma
remuneração
que precisa
ser moderada. Em
outros termos, a relação
custo-benefício dos bancos tem
de ser positiva para
a economia. A
manchete dominical do jornal O Estado de S. Paulo em 18 de
de- zembro de
2016 resumiu bem a
questão: “Crise de
crédito tira
R$ 1 tri da
economia e piora
recessão”. No mesmo
período de 12
meses em que
a economia brasileira
afundava, o Itaú
apresentou aumento
de lucros de
32%, e o Bradesco, de
25%. Os
estadunidenses e
europeus
se espantam com
o spread bancário
de 35%, um ganho sem
o trabalhoso processo de
identificar projetos,
financiar investimentos,
enfim, fazer a
lição de casa: usar
o dinheiro para dinamizar
a economia em vez
de extorquir
produtores e
consumidores.
O
quadro já crítico piora
naturalmente com a paralisia do quarto
motor da
economia, que
são os
investimentos
públicos
em infraestrutura e políticas sociais. Os juros
internacionalmente praticados
sobre títulos
do governo
situam-se na
faixa de
0,5% a 1%
ao ano.
O endividamento
público só
se justificaria
se a
capacidade financeira gerada
no governo permitisse
uma dinamização da economia que
fosse capaz de
render mais do que
o custo da dívida. Com
uma Selic
fixada em
25%
ao ano
em julho
de 1996, que
permaneceu nesse
nível
(tendo chegado
a 46%)
durante a
era FHC e
situou-se na faixa de 14% na era Lula e Dilma
(primeiro mandato), o
endividamento
público se
constituiu em
mecanismo de transferência dos
nossos impostos para os donos
dos títulos. Não se
tratou aqui de financiar
o governo, mas de drenar
os seus recursos,
desviando os nossos
impostos e travando a
capacidade de
fomento
econômico do
Estado. Veja
os dados
na Figura
5.
Fonte: Banco Central do Brasil e IpeaData; elaboração de Nelson Barbosa
Em 2015, o serviço da
dívida pública drenou
0,5 trilhão de reais (8,4% do PIB), essencialmente para bancos, mas
também para grupos internacionais e, evidentemente,
para parte da clas-se média alta que
tinha nessa taxa importante base de rentismo.
Em 2017, a quantia
drenada foi da
ordem de 6,1% do PIB, cifra
um pouco menor, mas, com
a queda da inflação e o
aumento do volume
da dívida, essa
redução representou pouca
diferença em termos reais.
Atribuir
o déficit
das contas
e a
necessidade de
um ajuste
fiscal ao excesso
de “gastos”
com políticas
sociais, argumento
repetido milhões
de vezes
para convencer
uma população
pasmada com
a recessão, constituiu
uma farsa.
O déficit
foi
essencialmente gerado
pelo serviço
da dívida
pública. O
déficit das
atividades
próprias do governo,
o chamado
“resultado primário”
das contas
públicas, nunca
ultrapassou 2%
do PIB.
Na
União
Europeia se
recomenda que
não passe
de 3%.
Nada
de anormal.
No
nosso
caso, sua
ordem de grandeza
é de
cerca de
400 bilhões
de reais
ao ano,
que
poderiam dinamizar
a economia
através
do investimento
público,
mas que
são em
grande
parte reaplicados
na dívida
pública que
explode.
Trata-se evidentemente
da raiz
da crise
das contas
públicas.
Não há dúvidas quanto ao efeito multiplicador dos investimentos públicos em infraestrutura. Mas, curiosamente, os investimentos em políticas sociais como saúde, educação, segurança e outras são apresentados entre nós como “gastos”, quando há tempos em contabilidade se entendem essas rubricas como investimento nas pessoas. Inclusive, foram esses tipos de investimento que geraram os principais milagres econômicos, em particular na Ásia, mas também na Finlândia e em outros países. Na realidade, o bem-estar das famílias depende em parte da renda, a economia out-of-pocket, mas também do salário indireto: o canadense pode ter salário inferior ao do estadunidense, mas tem acesso gratuito universal a creche, escola, saúde, espaços de lazer e outros. O bem-estar familiar é muito superior, e a economia, mais performante. A perda da capacidade de expansão desse acesso universal a bens públicos gratuitos, pelo desvio dos recursos para o serviço da dívida, representa um recuo em termos de desenvolvimento. Particularmente absurdo, nesse contexto, é o fato de a Emenda Constitucional 95/2016 travar as políticas públicas, mas não o gasto com juros, de longe a principal fonte de esterilização dos recursos públicos.
Vimos
que os intermediários
financeiros extraem, sob forma de juros pagos pelas famílias e pelas
empresas, o equivalente a 15% do PIB. Aqui
vemos que parte
dos nossos impostos, no valor de cerca de 5% a 6% do PIB, conforme o
ano, é também transformada em juros por meio da dívida pública. É
bom lembrar que, embora
a taxa Selic tenha baixado para 3,75%, a inflação baixou mais
ainda, e o estoque sobre o qual incidem esses juros aumentou
radicalmente, o que significa
que, em termos reais, o
dreno continua.
Se somarmos
os três
drenos –
sobre a
demanda das famílias,
sobre a
capacidade de
investimento das
empresas e sobre a
capacidade de investimento do Estado –, estamos
falando em mais de 20% do PIB esterilizados. Não
há economia que possa
caminhar assim.
Há
outros espaços de subutilização de recursos. Por
exemplo, os
fundos de pensão manejam um estoque
acumulado de recursos da ordem de 1 trilhão de reais (15%
do PIB). Em muitos países,
há uma regulação do setor que
assegura que esses
recursos sejam investidos
produtivamente, de
forma a poder cobrir as
futuras necessidades dos
aposentados. No Brasil,
tais fundos podem aplicar até 100% do total em títulos da dívida
pública. Assim, a
pensão complementar dos mais
prósperos é em boa parte financiada pelos
impostos de todos e
em particular dos mais
pobres, que pagam
proporcionalmente mais
impostos.
Há deformações semelhantes em outros setores, em particular no das seguradoras, mas o que nos interessa aqui é o fluxo integrado, a deformação radical do sistema de intermediação financeira do país, que, em vez de financiar a economia e dinamizar o investimento produtivo, gera custos de intermediação para todos. É o que Gerald Epstein e Juan Antonio Montecino, do Roosevelt Institute, em pesquisa sobre o fluxo financeiro integrado nos Estados Unidos, chamaram de “produtividade líquida negativa da alta finança”. Em vez de servir a economia, os intermediários financeiros dela se servem. Mais popularmente, os estadunidenses dizem que, hoje, the tail is wagging the dog[o rabo está abanando o cachorro].
A maior parte dos países
que funcionam, quando
defronta com
essa deformação,
busca resgatar
o equilíbrio
por meio
do sistema
tributário. Nosso sistema
não só não corrige como
agrava os
desequilíbrios.
No
Brasil, 50%
da carga
tributária incide
sobre o consumo, sob
forma de impostos
indiretos. Como os mais pobres transformam a quase
totalidade da sua renda em consumo,
são eles
os que
pagam proporcionalmente
mais impostos.
O caso absurdo
da lei que isenta
lucros e dividendos
de tributação é
particularmente grave.
Aprovada em 26 de
dezembro de 1995,
essa lei favorece
obviamente
os ganhos
dos
afortunados no
topo
da pi
râmide
social. Acrescente-se
a inexistência
de um
imposto sobre
grandes fortunas, o valor
simbólico do imposto sobre herança, a alíquota
superior muito baixa
do Imposto de Renda e a virtual inexistência do Imposto sobre a
Propriedade Territorial Rural
(ITR), e temos de
constatar que o sistema
tributário aprofunda a
deformação
de maneira
grotesca. Trata-se
de um
sistema organizado
de recompensa dos
improdutivos.
O
poder econômico
dos
mais ricos,
em particular
dos
grandes bancos,
transformou-se em
poder político,
o que
permite aumentar
o dreno
dos
recursos. O
Sindicato Nacional
dos
Procuradores da Fazenda
Nacional (Sinprofaz) estima a evasão
fiscal em cerca de 600 bilhões de reais. Essa evasão
evidentemente não é por parte dos
assalariados, que têm
o imposto descontado em
folha
e pagam impostos indiretos incluídos
no preço dos produtos, e
sim por
parte dos
mais ricos.
Não
só não
investem
como drenam a
economia e nem sequer pagam
os impostos devidos. Todos
os grandes bancos
e financeiras dispõem de departamentos
técnicos para
ajudá-los a
sonegar –
com procedimentos
chamados de
“otimização
fiscal” –
e de
filiais acolhedoras
em paraísos
fiscais.
O
que
restou do
artigo
192
da Constituição
ainda reza
que
“o
sistema financeiro
nacional [será]
estruturado de
forma
a promover
o desenvolvimento
equilibrado
do país
e a
servir aos
interesses da
coletividade”. Estamos
habituados a qualificar
de desvios, roubo ou
corrupção tudo
que
pode ser
considerado
ilegal. Mas
a realidade é que
a grande corrupção,
os desvios realmente
significativos em termos
dos descaminhos da
economia, têm hoje suficiente força
política para
gerar
a sua
própria legalidade
por meio
de leis menores
que simplesmente
ignoram a obrigação de “promover
o desenvolvimento
equilibrado do
país”. Em termos substantivos,
os que gerem
nossos fluxos financeiros simplesmente
deixaram de “servir aos interesses da coletividade”
e passaram a travá-los.
Taxas de juros que em
qualquer país ou
circunstância constituiriam usura e seriam, portanto, proibidas aqui
são perfeitamente legais. Apropriar-se dos
recursos produzidos por terceiros sem uma contribuição
produtiva correspondente
é o quê?
A
extração do excedente que a
sociedade produz, por parte de intermediários financeiros e outros
rentistas, adquiriu essas dimensões impressionantes em grande parte
pelo fato de os instrumentos de regulação financeira se situarem no
nível
nacional num contexto em que
as finanças são essencialmente globais. A moeda é hoje um
sinal magnético, navega no
planeta com imensa volatilidade, e a sociedade tem capacidades muito
limitadas de controlar os seus fluxos, que
dirá orientá-los para atividades produtivas. No
seu estudo sobre o Brasil, a Global Financial Integrity estima
que os vazamentos para o
exterior por sub e sobrefaturamento (esses, sim, ilegais, práticas
fraudulentas) custam ao país aproximadamente 35 bilhões de dólares
anuais, cerca
de 2%
do PIB.
E a
Tax
Justice Network
estima que
o estoque de recursos do Brasil em paraísos fiscais atinja
520 bilhões de
dólares, cerca
de um
terço do
PIB. Desse
total, menos de 3%
foram repatriados.
A
economia financeira do Brasil vaza por todos os lados. Não somos os
únicos a enfrentar o desafio da financeirização improdutiva. Nas
últimas décadas, como vimos, as aplicações financeiras têm
rendido no mundo entre 7% e 9% ao ano, enquanto o PIB cresce na ordem
de 2% a 2,5%. Os fluxos financeiros se dirigem, naturalmente, para
onde rendem mais, e não é na produção que isso ocorre, pois
aplicações financeiras rendem mais do que investimentos produtivos.
No Brasil, o sistema é apenas muito mais deformado. A
financeirização amplia o rentismo e agrava a absurda concentração
de riqueza.
O nosso problema nunca
foi de ajuste fiscal. Se
somarmos o travamento do
consumo das famílias e o da atividade
produtiva empresarial, o
desvio
dos
recursos públicos
para o
serviço da
dívida, o agravamento
gerado pela
estrutura da carga tributária, a evasão
fiscal, a fuga para o exterior e o amplo
uso dos paraísos
fiscais, sem dúvida, temos
uma economia disfuncional. Não
sonhamos aqui com
uma solução milagrosa. O nosso
objetivo é
mostrar que
no centro
de uma
economia que
funciona está
o marco zero da
ciência econômica: a alocação racional dos
recursos.
A
regra de ouro realmente existente é que
a remuneração dos
agentes econômicos deve
ser minimamente proporcional
à sua contribuição
para a
economia. Devemos
recompensar quem
mais multiplica as riquezas,
não quem é mais
esperto em drená-las. Ao
apresentar o fluxo
financeiro integrado, buscamos
mostrar que as soluções
são sistêmicas, exigindo um novo
pacto para o desenvolvimento.
Já se foi
o tempo em que a
“liquidez” consistia
em dinheiro material emitido pelo governo.
Na era do dinheiro
imaterial, o essencial das emissões tem origem
nas instituições financeiras
sob forma
de crédito.
Em
termos mais amplos, o
exemplo do Brasil
evidencia que
o sistema financeiro se transformou
em um mecanismo de extração do excedente
mais poderoso do que a
própria exploração salarial,
invertendo a tendência
mundial de redução das desigualdades dos
trinta anos do pós-guerra. Na
realidade, geram-se
impactos acumulados, na medida em que
os próprios salários
e os direitos
sociais são
travados
pelas exigências
do lucro
financeiro. Um
eixo central de definição do modo de produção, a forma
de extração
do excedente
e de
exploração
das populações,
está se
deslocando. Em termos de
produtividade social, os
senhores da dívida não
são muito diferentes dos
senhores feudais: vivem
do esforço
dos
outros.
Mas
a escala
de exploração
é muito
superior.
O
aprofundamento da desigualdade
A mudança
é sistêmica
não só
pela intensificação
da exploração,
que passa a acumular a
exploração salarial e a
apropriação financeira,
como pelo fato de o lucro financeiro gerar
um ônus sobre
o sistema
produtivo.
O produtor
tradicional de
uma fábrica de
sapatos, por exemplo,
explorava os seus trabalhadores,
mas o resultado para
a sociedade
eram empregos
(ainda que
mal pagos),
demanda de
máquinas e
matérias-primas, sapatos
para a
população e
impostos para
financiar infraestrutura
e políticas
sociais. O eixo
orientador
era o
lucro.
No
caso do
capitalismo
financeiro,
como
vimos,
o eixo
orientador é o
dividendo, a
rentabilidade dos papéis. Uma
distinção fundamental
aqui é entre
o investimento e a
aplicação financeira. O
banco,
por razões
evidentes,
chama tudo
de
investimento,
pois parece
mais nobre.
Mas
o 1%
mais rico
que
controla
a massa
de
recursos no mundo
não investe, no
sentido de
gerar novas
capacidades produtivas,
e sim
faz aplicações
financeiras que
hoje
rendem
mais do
que
a produção.
A rentabilidade
financeira dos
papéis
pode ser muito
grande,
mas não
gera
nem
um par
de
sapatos
nem
uma casa a
mais. O
eixo
orientador
do
capitalismo
financeiro é
o dividendo,
que
gera
uma nova
lógica
no
conjunto
do
edifício
capitalista.
A
capacidade impressionante de
apropriação, por
uma minoria, do
excedente que a
sociedade produz constitui um
processo cumulativo.
Costumo usar uma
imagem que
tomei emprestada da
cientista política
franco-estadunidense Susan
George. Um
capitalista que
aplica 1 bilhão
de dólares para
render modestos 5%
ao ano está ganhando
137 mil dólares
por dia. Como
não tem como gastar
tanto dinheiro, termina
por reaplicar
a maior parte, gerando
o processo
cumulativo, o
chamado snowball
effect, efeito bola
de neve. O pobre
gasta, o rico
aplica. A classe
média pega uma carona
insegura em pequenas
aplicações e torce para
o rentismo
prosperar5.
O mecanismo absurdo
do novo
ciclo de
desigualdade tornou-se
claro com os estudos
de Thomas
Piketty. Mas
o que ajudou
muito no seu
dimensionamento foi
a complementação do
estudo da
concentração da renda
por meio
da análise da
concentração do
patrimônio, iniciado no
quadro da
Organização das
Nações Unidas
(ONU), mas
generalizado pelo
Credit Suisse e divulgado
mundialmente
pela Oxfam. No
caso do Brasil,
seis pessoas dispõem de
mais riqueza do
que a metade
mais pobre da
população, e 5% dispõem
de uma fatia
maior do que
os 95% restantes.
No nível
mundial, 26 famílias têm
mais patrimônio do
que a metade
mais pobre (3,7
bilhões),
e 1%
tem
mais patrimônio
do
que
os
99% restantes.
O relatório
da Oxfam
de 2018
para o
Fórum
Econômico Mun-
dial confirma
a queda
livre
que
enfrentamos:
A desigualdade está piorando: 82% da riqueza criada no último ano foi para o 1% mais rico da população global, enquanto 3,7 bilhões de pessoas que constituem a metade mais pobre da humanidade não receberam nada. A nossa economia quebrada está ampliando o hiato entre os ricos e os pobres. Isso permite que uma pequena elite acumule vasta riqueza às custas de centenas de milhões de pessoas, frequentemente mulheres, que lutam pela sobrevivência com renda de pobre e direitos básicos negados17.
Desigualdade
parece um tema batido. Mas não
se trata apenas de
injustiça: é
um mecanismo
que
trava
a economia,
gera
explosões sociais,
desarticula a
sociedade como
um todo.
Estamos muito
além da
mais-valia tradicional
nas empresas
produtivas.
A mais-valia financeira permite explorar
tanto governos, por
meio da dívida
pública, quanto
empresas
e pessoas
físicas, gerando
uma classe de intermediários financeiros que
não só não financiam a produção,
o consumo
e os
investimentos
públicos
– os
motores da
economia – como os paralisam. Estamos na era da acumulação
improdutiva de
patrimônio, da descapitalização da sociedade. É uma
desorganização sistêmica. A reforma
do sistema financeiro
global
(e nacional,
no Brasil)
constitui o
desafio central.
Enriquecimento sem a contrapartida
produtiva –
“unearned income6,
na terminologia em
língua inglesa
– gera
rentistas ricos
e economias
travadas.
Além,
é claro,
do caos
político que
se aprofunda
em tantos
países, em
particular no
Brasil.
A
desigualdade, a partir de um certo nível,
gera uma economia
e uma sociedade disfuncionais. Em termos éticos, é simplesmente
escandaloso haver no
mundo quase 1 bilhão de
pessoaspassando fome,
entre as quais
quase 200 milhões de crianças. A falta de acesso a
medicamentos, água
limpa, infraestrutura básica, eletricidade,
em pleno século XXI, é
simplesmente vergonhosa.
A canalização de recursos para aliviar o desespero deve
constituir uma prioridade evidente
para qualquer pessoa
decente. Qualificar de “populismo”
ou de “esquerdismo”
qualquer manifestação
de indignação
com a
situação atual
constitui um
argumento
absurdo.
A fome
não é
nem ortodoxa
nem hetorodoxa,
sua existência é uma vergonha.
Em particular, uma vergonha
para os mais ricos.
A
desigualdade
é igualmente
absurda
em termos
econômicos. Primeiro,
porque custa muito
mais enfrentar os
mais variados efeitos
da desigualdade
e da
miséria do
que
possibilitar
de
maneira organizada
o acesso
generalizado
ao básico
necessário
a uma vida
digna para
todos.
E a
desigualdade
se torna
particularmen- te absurda
quando
se sabe
que
a concentração
da renda
e do
patrimônio,
ao privar
a massa
da população
do
consumo,
trava
os próprios
processos
produtivos
pela redução
da demanda.
Como
no caso
brasileiro
visto anteriormente,
o estrangulamento
econômico
provocado
na base
da sociedade
pelo
sistema financeiro
levou ao
colapso
do
próprio
sistema produtivo.
E, como
o Estado
depende
do
consumo
e da
produção
para as
suas receitas,
travaram-se
os investimentos
em infraestrutura
e em
políticas
sociais. As
economias
que
funcionam
se apoiam
numa
distribuição
razoavelmente equilibrada
dos
recursos da
sociedade,
e isso
é válido
para praticamente
todos
os exemplos
de
sucesso
econômico
no
mundo.
A
desigualdade também
trava
os processos
políticos, gerando
sociedades em permanente conflito. A concentração
de riqueza permite
que os grupos dominantes
se apropriem do governo,
do judiciário, da mídia, tirando do Estado a sua função
central de elemento de
reconstituição dos equilíbrios
políticos, sociais e econômicos.
A privatização
das dimensões
públicas da
sociedade desorganiza o
conjunto.
No
plano nacional,
vêm
à tona
os discursos
mais escabrosos,
elegem-se pessoas
como Trump
nos
Estados Unidos, votam-se
absurdos como o Brexit no
Reino Unido,
sem falar do Brasil com o golpe
e a eleição de uma aberração política. No
plano internacional, a Europa se cobre de cercas de arame
farpado nas fronteiras, Trump
batalha a construção de uma gigantesca muralha com o México,
Israel confina os palestinos em zonas controladas,
absurdamente cada vez
mais parecidas com campos de concentração.
Seria mais inteligente aproveitar a
imensa demanda contida dessas
populações para dinamizar a economia do
conjunto.
Hoje
é evidente que
neste pequeno planeta
não haverá paz nem
equilíbrio enquanto não
se gerar um global new deal,
um novo
pacto global
pelo desenvolvimento
inclusivo.
O relatório
da Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
(Unctad,
na sigla
em inglês)
é explícito:
Nenhuma ordem social ou econômica se mantém se não consegue assegurar uma distribuição justa dos seus benefícios em tempos bons e dos custos em tempos difíceis. Insistir que “não há alternativa” é um lema político ultrapassado. Por toda parte aspessoas desejam basicamente a mesma coisa: uma ocupação decente, acesso à moradia, um meio ambiente seguro, um futuro melhor para os seus filhos e um governo que escute suas preocupações e a elas responda; na realidade, elas querem um pacto diferente do que é oferecido pela hiperglobalização. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que codifica uma série de objetivos, metas e indicadores, aponta nessa direção. 7.
Na
minha convicção,
enquanto não houver uma
massa maior de pessoas
que
entendam os
mecanismos de
deformação
do nosso
desenvolvimento, não
haverá força
suficiente para as transformações.
E temos
a vantagem
de que
o que
funciona na
economia é bastante
simples: consiste
no enfrentamento
sistemático da
desigualdade
e dos desequilíbrios
ambientais. Desta
vez, qualquer pacto terá
de “levantar todos os
barcos”, tanto nos países
em desenvolvimento como
nos desenvolvidos,
e se mostrar à altura do desafio colocado pelo fato de que
muitos dos desequilíbrios
que travam
um crescimento sustentável
e inclusivo são
de natureza global. “A
prosperidade para
todos não pode ser
proporcionada por políticos focados
na austeridade, por
corporações centradas no
rentismo
e por
banqueiros
especuladores. O
que
necessitamos agora,
urgentemente,
é de
um novo
pacto global.”8
O sistema de exploração, portanto, ampliou-se e sofisticou-se. Os avanços de produtividade, que resultam de uma ampla revolução científico-tecnológica no planeta, poderiam assegurar o aumento sustentado da produção e a generalização da prosperidade. Mas a massa da população se vê privada do acesso que merece pelo triplo processo de exploração que acumula a baixa remuneração, a extorsão por juros abusivos e a restrição do acesso aos bens públicos de consumo coletivo, como saúde, educação, segurança e outras políticas sociais. Nesse contexto, o sistema no poder não só precisa cada vez menos de democracia como tende a evoluir para formas de controle e coerção social cada vez mais violentas e invasivas para se manter. A transformação do mundo do trabalho ajuda a entender essa erosão da capacidade de resistência da sociedade.
—
1André Gorz, O imaterial: conhecimento, valor e capital, trad. Celso Azzan Jr. e Celso Cruz, São Paulo: Annablume, 2005,p.9.
3Mark Sweney, “Tencent, the $500bn Chinese Tech Firm You May Never Have Heard of”, The Guardian, 13 jan. 2018, disponível em: <https://www.theguardian.com/business/2018/jan/13/tencent-the-500bn-chinese-tech-firm-you-may-never-have-heard-of>, acesso em: 11 abr. 2020.
4Ver o nosso A era do capital improdutivo, 2. ed., São Paulo: Outras Palavras; Autonomia Literária, 2018, disponível em: <http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2018/11/Dow- bor-_-A-ERA-DO-CAPITAL-IMPRODUTIVO.pdf>,acessoem:11abr.2020.
5Sobre
o efeito bola de neve, ver Julian Sims et al., How
Money Works: the Facts Simply Ex- plained,
London: Dorling Kindersley Limited, 2017, p. 208.
6Diego
Alejo Vázquez Pimentel, Iñigo Macías
Aymar e Max Lawson, Reward
work,
not
wealth, Oxford: Oxfam GB, 2018, p. 8, disponível em: <https://oi-files-d8-prod.s3.eu-west-2.amazonaws.com/
s3fs-public/file_attachments/bp-reward-work-not-wealth-220118-summ-en.pdf>, acesso em: 12 abr. 2020.
7Unctad, Trade and
Development
Report 2017:
Beyond Austerity,
Towards a Global New
Deal,NewYork;Geneva:UnitedNations,2017,pp.I-II,disponívelem:<https://unctad.org/en/Pub- licationsLibrary/tdr2017_en.pdf>,acessoem:12abr.2020.