
Capitalismo e Desejo: o custo psíquico do livre mercado, roda de conversa promovida pelo Djanira Instituto de Pesquisa e Ensino, com Todd McGowan. A atividade é gratuita e ocorrerá das 18h45 às 20h. Para participar, basta se inscrever aqui.
Por Todd McGowan, no The Philosophical Salon | Tradução: Equipe do Djanira
O aspecto mais
surpreendente da pandemia do coronavírus é a relutância de líderes
com ambições autoritárias, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, em
declarar o estado de emergência. Fazer isso aumentaria o poder do
Estado e lhes daria um controle sem precedentes sobre as atividades
das pessoas, que é exatamente ao que os autoritários aspirantes
anseiam. Porém, longe de aproveitar a oportunidade de declarar o
estado de emergência, Trump, e seus apoiadores na FOX News,
decretaram que o surto de coronavírus era um não-evento, mesmo
quando ele começou a explodir. Alguns conservadores chegaram ao
ponto de rotulá-lo como uma conspiração esquerdista. Se Trump tem
inclinações autoritárias e seus seguidores da FOX News querem
impulsionar sua agenda autoritária, então, o que explica essa
relutância em abraçar as possibilidades de expansão do poder
estatal que o coronavírus ocasiona?
A relutância tem
muito a nos ensinar. Ela revela uma contradição onde no passado
vimos simbiose. A relutância de Trump em declarar um estado de
emergência demonstra uma contradição oculta entre capitalismo e
poder de estado. Embora o estado sirva mais frequentemente aos
interesses do capital, um desastre natural traz à tona o
desalinhamento entre ambos. Torna claro que somos criaturas
coletivas, não importa o quanto a lógica do capital insista que
somos mônadas isoladas, mesmo que a preocupação com a
coletividade, no caso [da pandemia], exija total isolamento.
Autoritários gostam
de declarar emergências, o que lhes dá uma justificativa clara para
tomar medidas políticas extremas. É por isso que os teóricos têm
tradicionalmente associado tais declarações ao fascismo. Na oitava
tese de “Sobre o Conceito de História”, o teórico antifascista
Walter Benjamin diferencia entre uma declaração de estado de
emergência e um “estado real de emergência”. A questão é
transformar o estado de emergência declarado em uma emergência real
que abalaria os fundamentos da sociedade capitalista. Para ele, a
declaração do estado de emergência é uma tentativa de manter uma
emergência real à distância, para facilitar o tipo de controle
autoritário que abafaria qualquer possível revolta emancipatória.
Outros pensadores, notadamente Giorgio Agamben, têm seguido Benjamin
nessa linha de pensamento.
Nem Benjamin nem Agamben fazem distinção entre as declarações de emergência. Todas são iguais em suas lógicas. Mas a emergência que resulta de uma catástrofe natural é fundamentalmente diferente da emergência provocada pela guerra. A guerra é sempre um fenômeno conservador porque mobiliza a distinção amigo/ inimigo, que é o ponto de partida da política conservadora. O filósofo ultraconservador Carl Schmitt vê esta distinção como a condição sine qua non da política como tal, mas isto é simplesmente um reflexo de sua orientação política. A política de esquerda ou emancipatória começa com uma coletividade que não requer um inimigo. A introdução de um inimigo indica o triunfo do pensamento conservador, mas desastres naturais como o coronavírus não se prestam à distinção amigo/inimigo.
Em certo sentido,
Donald Trump e os especialistas da FOX News tiveram razão em
considerar o coronavírus um fenômeno de esquerda. De sua própria
perspectiva política, Trump estava certo em resistir a declarar o
estado de emergência. Se o fizesse, afirmaria o coletivo e
arrancaria os indivíduos de seu isolamento ilusório. A declaração
de um estado de emergência durante um desastre natural nos emancipa
da falsidade da subjetividade capitalista. Esta declaração
obriga-nos a considerar-nos do ponto de vista do coletivo e a deixar
de lado os nossos interesses pecuniários individuais.
Todas as catástrofes
naturais colocam inerentemente a ordem social no terreno da política
emancipatória, porque revelam a prioridade do coletivo sem recorrer
a nenhum inimigo. Mesmo quando um desastre natural exige a construção
de firmes barreiras nacionais e regionais, ele une as pessoas na sua
separação, em vez de estabelecer oposição entre nós e eles.
Trump e a tentativa desesperada de sua equipe de criar um inimigo –
chamando o coronavírus de “vírus chinês” ou “Kung Flu” –
refletem sua compreensão implícita da política dos desastres
naturais. Um desastre natural exige que mesmo os líderes
conservadores comecem a procurar respostas de esquerda, e é por isso
que vemos republicanos no Congresso dos EUA apoiarem uma versão de
renda básica universal, embora de forma temporária e bastarda. Esta
iniciativa legislativa mostra que agora os conservadores estão
jogando no território da esquerda como resultado do vírus.
Obviamente, nada
garante um resultado emancipatório. Se os líderes conseguirem
estabelecer uma distinção amigo/inimigo que a maioria das pessoas
aceite, o desastre natural se tornará semelhante a uma guerra. Dessa
maneira, ocasionará uma virada autoritária e deixará de ser um
fenômeno emancipatório. Mas isso exigirá um imenso trabalho
ideológico da parte dos líderes conservadores. Isso vai contra a
natureza do evento em si.
Em meio ao desastre
natural em curso, o Estado deixa de aparecer como um empregado das
exigências do mercado. A lógica do capital exige a acumulação
ininterrupta de mercadorias, que é o que exclui a resposta do Estado
ao desastre. O desastre torna obscena a lógica do capital. Quando a
ameaça do vírus começou a se intensificar, no dia 5 de março,
Rick Santelli apareceu na CNBC para expressar essa lógica em termos
não adulterados. Ele defendeu o reinado livre do vírus, a fim de
minimizar a perturbação econômica. Embora isso resultasse em
hospitais abarrotados e milhões de mortes, manteria o fluxo do
capital. Embora a pressão pública tenha forçado Santelli a recuar,
seu sentimento inicial fornece uma boa visão dos ditames que o
capital exige.
Cheio de
preocupações com a segurança pública durante a epidemia do
coronavírus, o Estado não seguiu o conselho de Santelli. Não
seguiu a lógica do capital. Em vez disso, Trump, apesar de seu
compromisso com a acumulação incessante, introduziu restrições à
economia capitalista. Como resultado do desastre, mesmo líderes
estatais conservadores, como Trump, têm que implantar o poder
estatal de uma forma diretamente anticapitalista. Embora o objetivo
final de Trump seja, sem dúvida, salvar a sociedade capitalista, o
fato de que ele deve agir para salvar vidas às custas do capital
revela a tensão subjacente entre o Estado e o capital. Cabe a nós
levar a tensão ao seu ponto de ruptura nos meses e anos que se
seguem.
Essa luta não será
simplesmente uma luta contra as forças do capital e seus
representantes. Deve também opor-se àqueles de esquerda que
permanecem intransigentes na sua hostilidade ao Estado. Isso inclui
os teóricos do biopoder, como Giorgio Agamben e Roberto Esposito, os
quais têm demonstrado, em suas respostas à catástrofe do
coronavírus, o perigo inerente ao próprio conceito de biopoder.
Esse conceito não os leva a uma suspeita total do Estado combinada
com um completo silêncio sobre o capital – uma combinação mortal
não só em tempo de crise?
Os múltiplos e
longos discursos de Agamben investem contra uma resposta coletiva ao
surto. Ele não vê nada de louvável na demonstração de uma
preocupação pela vida às custas do capital, apenas um fracasso em
viver à altura dos nossos ideais de liberdade e compaixão. Agamben
acredita que, ao nos retirarmos para nossas habitações
particulares em nome da segurança pública, traímos o que ele chama
de “a unidade de nossa experiência vital”. Ele chega a censurar
o Papa Francisco por não visitar os doentes do coronavírus da forma
como o seu homônimo visitou os leprosos. Incapaz de ver a
preocupação pelos outros no seio desse retiro da interação,
Agamben acaba tomando o partido dos apologistas da versão mais voraz
do capitalismo.
O que a pandemia do
coronavírus revela é que, numa era de capitalismo irrestrito, agir
em nome da sobrevivência coletiva é um ato político. É isso que a
teoria do biopoder, que vê o estado como um local de poder que nos
vigia, não consegue reconhecer. A capacidade de parar a produção e
o consumo capitalista desenfreados atesta a existência de compaixão
que resiste à lógica da mercadoria. Neste momento, a declaração
do estado de emergência representa um ponto, no qual o coletivo diz
não ao imperativo da acumulação.
Uma reconsideração
do estado de emergência e do poder do Estado nos tempos do desastre
do coronavírus nos permite reiniciar o modo como pensamos sobre a
Esquerda e a Direita. Podemos ver possibilidades emancipatórias em
locais que costumavam ser pensados como domínio do conservadorismo.
O estado não precisa mais ser visto como uniformemente despótico.
Dessa forma, maximizamos a oportunidade que nos foi dada pelo
desastre. Os desastres podem não ser capazes de nos libertar, mas
podem nos mostrar um caminho para a emancipação.
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